sábado, 19 de novembro de 2016

A agonia do castanheiro

Ao bisavô gigante
Ao grande castanheiro ancestral da floresta,
Vai chegar, vai chegar, o derradeiro instante!
Três séculos viveu, e um minuto lhe resta
De agonia!
O tronco inanimado e os braços cadavéricos
Já não sabem se é noite ou se alvorece o dia!..
Já não vêem da luz os êxtases quiméricos.
Já não ouvem do Imenso a vaga sinfonia!
É cega, é surda, é muda a árvore que outrora
Quis, titânica, erguer-se aos astros imortais
Já desfeita, a raiz profunda, não devora,

Já o oiro vibrante e eléctrico da aurora
Não lhe acorda a nudez dos braços espectrais!
Mas da velha raiz, defunta e carcomida,
No extremo nódulo da vida,
Uma célula existe, a última e a primeira,
Onde a alma, a tremer d'assombro, espavorida,
Anseia no estertor da crise derradeira.
É o átomo divino, a misteriosa essência,
Donde o corpo brotou com atlético ardor,
E, que extinta essa forma, essa breve aparência,
Volve ao abismo da existência,
Eternamente criador.
Oh instante supremo!... oh angústia! ... oh tortura!...
Oh vertigens de sonho!... oh noite! ... oh podridão!
Todo o infinito opaco à volta lhe murmura…
E entre névoas de dor, de terror, de loucura,
Ergue-se do passado a umbrática visão!

Memórias vagas:

Foi semente,
Embrião de monstro, alma latente
Na terra negra a germinar,
E, aspirando num sonho obscuro, vagamente,
Ao infinito, à vida, à luz vermelha, ao ar!...
Oh êxtase do ser!... frémito d'alva!... quando,
A radícula ingénua e débil mergulhando
No húmus tenebroso e surdo e criador,
Abriu à luz, recém-nascida, palpitando,
Duas folhinhas unitrémulas, sem cor!...
Vida!... deslumbramento!
Sonho fluido!... mistério!... esplendor! esplendor!

Abílio Guerra Junqueiro (1850-1923), A agonia do castanheiro